4 de dez. de 2014

DIA 34 – ARICA, CHILE

Pobres de nós, acordamos sem saber o que nos aguardava. O caminho de Huara a Arica foi certamente o mais tenso de toda a expedição. De início tudo belo, tudo tranquilo. Porém logo entramos em uma rota que beirava as montanhas dos Andes onde de um lado era o barranco e do outro o precipício e por muitos quilômetros sem nenhuma barreira de segurança. A para trazer ainda menos tranquilidade, muitas cruzes indicando acidentes fatais. Mas a aventura não se limitou a isso, somado a tudo isso havia os ventos mais fortes de todos os quase 7 mil quilômetros. Houve um certo momento em que eu já não conseguia tombar a moto o suficiente para enfrentar as rajadas de vento lateral, e pedi a Mel que também fizesse peso para o lado e mesmo assim a moto era levada para o outro lado da pista. Eu não sabia se era mais arriscado diminuir a velocidade e parar ou acelerar. Quando atravessamos a fronteira provincial o guarda nos parou para averiguar documentos. Como em todo o resto da viagem, o guarda foi cordial e não criou nenhum problema, até nos aconselhou cautela nos próximos quilômetros, pois ainda enfrentaríamos ventos fortes vindos do litoral.
Depois da fronteira provincial começamos novamente a subir e descer montanhas no deserto. Estas já eram bem mais íngremes do que qualquer outra que havíamos encarado até o momento. A moto muitas vezes precisava subir em terceira ou até segunda marcha, porém sempre se desempenhando bem. Até que no alto de uma das montanhas escutamos e sentimos um estalo forte na moto. Ela estava em terceira e finalizando a subida. Prontamente freei e a desliguei, guiando para o acostamento. Descemos e descobrimos a tragédia. A corrente saiu da roda traseira. Tive o mesmo sentimento que quando em Montevideo, quando o pneu furou. Tirei a bolsa de ferramentas da mala de tanque, me xinguei mentalmente por nunca ter checado a tensão da corrente e procurei as ferramentas para afrouxar o pinhão e poder colocar a corrente de volta. Parece fácil para quem tem conhecimento, mas foi extremamente difícil para mim que sou leigo no assunto. Colocamos a moto no cavalete e pedi a Mel que fizesse peso na frente da moto para eu poder afrouxar o pneu. Meu maior medo era que caísse vinte peças e eu não soubesse colocar de volta, como aconteceu em Montevideo. Depois de algum tempo consegui, com muito esforço, colocar a corrente e ajustar a tensão. Quis fazer um teste antes de subirmos na moto e cantar vitória, levando ela desligada alguns metros afrente. Cerca de dois metros depois, clec! A corrente saiu de novo. Não acredito, pensei. Lá fui eu fazer todo o trabalho de novo tentando manter a calma na medida do possível. O calor de quase 40 graus e os carros que passavam buzinando e caçoando de nós dificultavam a missão. Corrente colocada novamente, novo teste, corrente sai novamente. Notei que quando ela se movimentava inclinava para o lado, o que fazia sair da roda. E não houve maneira de corrigir aquilo, ainda mais para quem nunca sequer tinha prestado atenção na corrente a não ser para lubrificá-la. Desisti do conserto e concordei com Mel em irmos andando e levando a moto até a próxima cidade, que por sinal ficava a 37kms de distância. Claro que não seria possível mas nenhum filho de Deus adotado queria parar para nos ajudar e já não sabíamos o que fazer. Mas nem isso deu certo. Quando a moto andava 3 metros a corrente travava a roda tornando impossível move-la. A saída seria apelar e se jogar na frente de algum carro. Passadas três tensas horas debaixo daquele sol escaldante do deserto, uma caminhonete vermelha passou. Acenamos mas ela não parou. Eu, estando já nervoso, virei pra trás e mostrei o dedo do meio para a caminhonete que naquele momento desacelerou e fez meia-volta. Rezei para que não tivesse visto o dedo. A caminhonete era de uma mineradora, dentro estava um rapaz chamado Juan Pablo. Depois de contarmos o ocorrido ele disse que também não entendia nada de mecânica para nos ajudar, mas poderíamos tentar colocar a moto na caçamba da caminhonete e ele nos levaria até Arica. Aceitamos no mesmo momento, ambos coçando a cabeça por vermos que certamente a moto não caberia na caçamba. Juan Pablo direcionou a traseira da caminhonete contra um barranco de pedras, assim ficaria mais fácil (haha) colocarmos a moto para dentro. Como a bendita Suki não podia se mover por estar com a corrente presa na roda traseira, tivemos que carrega-la no braço. Só posso dizer que fiz esforço o suficiente para 2015 inteiro. Na primeira tentativa colocamos a moto de ré. Sobrou metade da moto para fora da caminhonete e não haveria como prendê-la. A tiramos para fora e tentamos novamente com a moto de frente e sobrando um pouco da traseira dela para fora da caminhonete. Juan Pablo tirou da manga duas cordas e começou o processo de amarrar a moto firme o suficiente para que não ficasse sambando na caminhonete. Fui auxiliando no processo enquanto Mel colocava toda a bagagem dentro da caminhonete. Feito as amarras, entramos todos na moto e partimos. Eu e a Mel ambos rezando para tudo quanto é santo de moto para segurar a pobre Suki naquela caminhonete. Eu evitava, mas na minha mente eu podia ver a cena da corda se soltando e a moto despencando pela estrada e montanha abaixo. Mas nosso santo é forte e uma hora depois chegamos em Arica. Juan Pablo conseguiu com dois policiais rodoviários o contato de um mecânico chamado Marco. Guiado pelas direções de Marco, achamos a oficina. Nós três tiramos a moto da caminhonete, agradecemos e nos despedimos de Juan Pablo e Marco tratou de chamar um de seus mecânicos para verificar nossa moto. O rapaz, chamado Cristian, prontamente sentou ao lado da moto, na beira da rua e começou o extenso processo de verificar que diabos estava acontecendo. Já era 5 da tarde e ambos eu e a Mel não tinhamos comido absolutamente nada e não tinhamos mais que o equivalente a 10 reais. A razão de estarmos com quase nada de dinheiro é que o bendito mapa físico que eu usava indicava Arica como parte do PERU, mostrando a fronteira um pouco abaixo da cidade. Porém Arica fica no CHILE. Por isso nosso calculo de finanças teria sido perfeito, se o Chile tivesse terminado em Huara.
Cristian nos informou que havia um lugar perto onde vendiam marmitex com arroz e frango pelo equivalente a 5 reais. Disse que podia ir comprar para nós já que não conhecíamos a vizinhança. Saiu de moto e pouco depois retornou com as marmitas. A mecânica tinha dois rottweiler enormes que certamente eram os guardas durante a noite. Ambos estavam presos nos fundos do galpão mas o cheiro de caca de cachorro estava por toda parte, forte o suficiente para te dar enjoo. Mas a fome era tanta que nem o cheiro de caca iria me impedir de devorar aquele marmitex. Não demorou muito até Cristian consertar a corrente da moto. Na verdade foi tão rápido que eu estava certo que a corrente iria sair novamente. Me falou para dar uma volta para testar. Receoso, liguei e saí bem devagar só tendo coragem de acelerar duas quadras depois. Voltando, perguntei o que havia acontecido mas ele falava num espanhol tão rápido que não entendi uma palavra sequer. “Ah, entendi” era a tática usada quando eu não entendia. Agora vinha a parte mais triste, o preço. Perguntei como iriamos pagar, pois só tínhamos dinheiro no cartão. Ele respondeu que não iria cobrar nada, em auxilio à nossa expedição. Se o mecânico de Calama tivesse pensado assim certamente ainda teríamos dinheiro.
Passado a tensão mecânica, fomos procurar um lugar para dormir pois já eram quase 6 da tarde. O GPS indicava um último povoado antes da fronteira chamada Villa Fronteira. Decidimos arriscar lá. O vilarejo ficava bem na costa e era repleto de campings privados, mas nenhum deles aceitava cartão. Quando ficamos sem opções, paramos em uma esquina para pensar no que fazer. Foi quando um carro verde parou e um homem perguntou se estávamos perdidos. Respondi que não e contei nossa situação. Ele disse que era arquiteto e tinha uma casa da qual estava trabalhando e estava quase finalizada. Ofereceu-nos passarmos a noite lá, pois era segura, tinha eletricidade e água. Agradecidos, aceitamos a proposta. Nos apresentamos e ele disse que seu apelido era Mincho (Mintcho). A casa ficava apenas a duas quadras de lá. Era de fato um lugar seguro. Ele nos mostrou os cômodos e disse que o melhor lugar para ficarmos seria o quarto do andar de cima. Chamou o guarda da casa e nos apresentou. O guarda ficava numa casinha dentro do terreno, ao lado da obra. Pediu minha ajuda para tirarmos um colchão de dentro de uma sala e levarmos até o quarto na casa, para podermos dormir. Depois ele puxou uma extensão para termos energia no quarto. Mincho, que já havia saído, retornou para nos fazer um convite. Disse que estaria fazendo naquela noite uma paella, pois era aniversário de sua esposa e teria amigos convidados. Ficamos muito contentes e honrados com o convite. Ele me deu a direção até sua casa, que não ficava longe de lá, e partiu. Combinei com a Mel irmos as 20 horas. Passei todo o restante do tempo imaginando a bela paella que nos aguardava, depois de dias comendo miojo.
Usei pela primeira vez na viagem minha camisa xadrez para ocasião. Eu não estava errado em traze-la pois sabia que cedo ou tarde alguém nos faria um convite que exigiria uma roupa que não fosse camiseta empoeirada de estrada. Andamos até a casa de Mincho e fomos muito bem recebidos por ele e por todos que lá estavam. Enquanto ele preparava a paella numa grelha no jardim, ficamos conversando com seus amigos na mesa da varanda da casa. Conhecemos um casal de Santiago com seus filhos, a esposa e filha de Mincho e posteriormente um outro casal. Todos muito simpáticos e interessados sobre nossa viagem. Cantamos parabéns, comemos paella com lagostas, tomamos cerveja chilena, vinho chileno, comemos bolo com sorvete e por último um café. Saímos super satisfeitos e felizes, além de um pouco embriagados. Todos nos acompanharam até perto da casa onde estávamos. Mincho nos mostrou o restaurante que estava construindo e ficamos todos contemplando o belo céu até o frio espantar todo mundo. Mal me lembro de voltarmos para a casa e cairmos na cama, mas de uma coisa eu estava certo: tivemos muita, muita sorte!


RODADOS NO DIA: 236 KMS
TOTAL RODADOS:  6841 KMS

POR DO SOL EM ARICA


MINCHO COM MEL 




E AGORA?



MEDO!!!



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